
 
Hip-hop tem que conhecer a história do movimento negro no Brasil, diz Abdias
Letras  e a atuação social do movimento “ajudam jovens negros a elevar o  conceito que têm de si mesmos e de sua comunidade", diz o ativista de 96  anos, que esteve junto de todas as grandes lutas negras nacionais e  internacionais no século XX
Ao  longo de seus 96 anos, Abdias do Nascimento participou de inúmeras  passagens importantes das lutas negras do século XX, não só no Brasil,  mas também nos Estados Unidos e na África. Nos anos de 1930 e 1940,  ajudou a criar a pioneira FNB (Frente Negra Brasileira). Escritor, ator e  artista plástico, teve papel fundamental para a afirmação da cultura de  origem africana, como na fundação do Teatro Experimental do Negro, em  1944.
Foi preso pela ditadura Vargas e perseguido após o golpe  militar de 1964. Exilado durante 13 anos, nos anos de 1960 e 1970  estabeleceu importante ponte entre o movimento negro brasileiro e as  lutas negras internacionais, num momento chave, seja nos EUA, no auge da  efervescência do Black Power, ou da África, com a descolonização de  vários países. Na redemocratização dos anos 1980, voltou ao país e  ajudou a organizar o MNU (Movimento Negro Unificado), fundado em 1978.  Foi eleito deputado federal e, depois, chegou a senador pelo PDT, sempre  defendendo projetos em benefício da população negra.
Na  entrevista a seguir*, respondida por e-mail, por sua esposa, Elisa  Larkin Nascimento, com quem fundou o Ipeafro (Instituto de Pesquisas e  Estudos Afro-Brasileiros) em 1981, e subscrita por ele, Abdias chama a  atenção para a importância de o movimento hip-hop atentar não só para os  líderes negros internacionais, como Malcolm X e Martin Luther King, mas  também à história do movimento negro no Brasil, para fazer jus à  condição de herdeiro dessas lutas. 
Central Hip-Hop (CHH): Qual é a importância do Dia Nacional da Consciência Negra?
Abdias do Nascimento: Quando  a demanda de se instituir o Dia Nacional da Consciência Negra no dia 20  de novembro surgiu, na década de 1970, eu já costumava dizer que a Lei  Áurea não passava de uma mentira cívica. Sua comemoração todo ano fazia  parte do coro de auto-elogio que a elite escravocrata fazia em louvor a  si mesma no intuito de convencer-se e à população negra desse esbulho  conhecido como “democracia racial”.
Por  isso o movimento negro caracterizou o dia 13 de maio como dia de  reflexão sobre a realidade do racismo no Brasil. O dia 20 de novembro  simboliza a resistência dos africanos contra a escravatura. Durante o  período colonial, em todo o território nacional, havia quilombos e  outras formas de resistência que, em seu conjunto, desestabilizaram a  economia mercantil e levaram à abolição da escravatura. Esse é o  verdadeiro sentido da luta abolicionista, cujos protagonistas eram os  próprios negros. Eles se aliavam a outras forças, mas muitas vezes foram  traídos por seus aliados. Mais tarde, entretanto, a visão eurocêntrica  da história ergueria os aliados como supostos atores e heróis da  Abolição. 
A  comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra em 20 de novembro tem  como objetivo corrigir esse registro histórico e reafirmar a necessidade  de continuarmos, nós, os negros, protagonizando a luta contra o racismo  que ainda impera neste país. 
CHH: Como o senhor avalia a questão da "democracia racial" no Brasil de hoje?
Abdias do Nascimento: O  racismo no Brasil se caracteriza pela covardia. Ele não se assume, e  por isso não tem culpa nem autocrítica. Costumam descrevê-lo como sutil,  mas isto é um equívoco. Ele não é nada sutil, pelo contrário, para quem  não quer se iludir ele fica escancarado ao olhar mais casual e  superficial. O olhar aprofundado só confirma a primeira impressão: os  negros estão mesmo nos patamares inferiores, ocupam a base da pirâmide  social, e lá sofrem discriminação e rebaixamento de sua auto-estima em  razão da cor. No topo da riqueza eles são rechaçados com uma violência  que faz doer. Quando não discrimina o negro, a elite dominante o festeja  com um paternalismo hipócrita ao passo que apropria e ganha lucros  sobre suas criações culturais sem respeitar ou remunerar com dignidade a  sua produção. 
Os  estudos aprofundados dos órgãos oficiais e acadêmicos de pesquisa  demonstram desigualdades raciais persistentes que acompanham o  desenvolvimento econômico ao longo do século XX e início do XXI com uma  fidelidade incrível: à medida que cresce a renda, a educação, o acesso  aos bens de consumo, enfim, à medida que aumentam os benefícios  econômicos da sociedade em desenvolvimento, a desigualdade racial  continua firme.
CHH: Qual  a importância que o senhor credita ao hip-hop, no Brasil, para o  movimento negro e para a população negra em geral? É um movimento  herdeiro das lutas que pioneiros como o sr. travaram?
Abdias do Nascimento: Considero  o hip-hop um movimento muito importante, sobretudo no aspecto da  auto-estima, pois as letras de muitas músicas e a atuação social de  muitos de seus integrantes ajudam os jovens negros e as jovens negras a  elevar o conceito que têm de si mesmos e de sua comunidade. 
Entretanto,  creio que os protagonistas do hip-hop tenham pouco acesso aos  referenciais históricos das lutas anteriores, e nesse sentido sua  condição de herdeiros seja um pouco simbólica. Por exemplo, me parece  que eles conhecem mais a história do movimento negro nos Estados Unidos,  o discurso de Malcolm X e Martin Luther King, e os referenciais do  reggae da Jamaica que os fatos e os discursos do movimento negro no  Brasil dos séculos XX e XXI. Pode ser que eu esteja equivocado, espero  que sim!
CHH: Depois de  séculos de lutas, hoje vemos uma juventude negra que está conseguindo  chegar às universidades, ter mais oportunidades econômicas, formando uma  elite intelectual negra. Que conselhos o sr. daria a essa juventude?
Abdias do Nascimento: O  Estatuto de Igualdade Racial e todos os outros dispositivos legais,  programas governamentais e instituições ou órgãos de governo dedicados  às políticas públicas de igualdade racial, por exemplo, são conquistas  concretas, frutos da atuação política do movimento negro. Nenhum deles  foi uma bênção ou dádiva dos governantes ou políticos, muito ao  contrário. 
Por  exemplo, as mulheres e os homens negros que atuam na área da saúde  conseguiram implantar o Programa Nacional de Saúde Integrada da  População Negra. Foi o movimento negro que conseguiu implantar programas  como esse. Há um universo enorme de ações, iniciativas e instituições  em todas as áreas – saúde, cultura, direito, educação, negócios,  políticas públicas, organização comunitária – que o movimento negro vem  construindo em todo o país, impondo sua presença contra obstáculos  enormes. 
O  conselho que dou para essa juventude é estudar, aprender, conhecer e se  preparar para então se engajar: agir, criar, interagir e participar da  construção das coisas. Cada um tem seu talento e sua área de interesse. O  importante é se colocar a serviço do avanço e dedicar-lhe as suas  energias. 
Hoje  há muito mais sensibilidade para a questão racial nos setores de  esquerda do que havia antes. Precisamos nos qualificar, dominar  criticamente o discurso hegemônico, mas criar também nosso próprio  discurso afirmativo, construtivo, para além da lamentação. Precisamos,  sobretudo, nos organizar. 
CHH:  Pensando o caso de Cuba, em específico, como o sr. considera o fato de  que um governo dito socialista, num país de população negra tão  expressiva, aparentemente não mostra avanços na participação política  dos negros?
Abdias do Nascimento: A  ideologia racial cubana é irmã gêmea da “democracia racial” brasileira.  O ideal da “Cor Cubana” acompanha a constante referência ilusória à  suposta cordialidade latina. A sociedade dominante cultiva uma  hierarquia social da cor baseada nos valores da supremacia branca. Ao  mesmo tempo, a elite majoritariamente branca que ocupa o poder  oficializa o auto-elogio de sua suposta generosidade histórica para com  os escravizados e os descendentes africanos.
A  dinâmica entre o sonho e a realidade do socialismo dá um tom distinto  ao questionamento do sistema no que diz respeito à questão racial.  Entretanto, não há como negar que os negros não estão presentes no poder  político do regime cubano em número proporcional à sua participação na  população.
Hoje  a demanda por uma abertura democrática do regime não é o discurso só de  uma minoria elitista, branca, incrustada em Miami e aliada aos  interesses do bloqueio. Há uma oposição de origem humilde, composta em  parte por negros e mestiços que apontam processos de exclusão e de  desigualdades raciais. Não podemos mais rechaçar essa oposição como um  bando de criminosos cuja traição se basearia em mentiras fabricadas pela  direita fascistóide.
CHH:  O Brasil assistiu, nos últimos anos, ao crescimento do movimento negro  rural, particularmente o movimento quilombola. Qual a importância da  questão da terra para o movimento negro, hoje?
Abdias do Nascimento: Como  fruto da mobilização política do movimento negro, a Constituição de  1988 estabeleceu o direito à titulação das terras das comunidades  chamadas “remanescentes de quilombos”. O grande argumento para negar o  direito de uma comunidade é alegar que ela não tem ou não provou que tem  antecedentes históricos que a qualifiquem como remanescente de  quilombo.
O  processo tem sido muito lento. Alguns anos atrás, a Fundação Palmares  publicou um levantamento em que identificou a existência de mais de três  mil comunidades quilombolas em todo o país, ressalvando que certamente  não conseguiu realizar um levantamento exaustivo ou definitivo. A  questão da titulação esbarra, evidentemente, em poderosos interesses  contrariados que, no contexto rural, ainda exercem a violência como  forma de se impor.
Vale  observar, também, que é negra a grande maioria dos sem-terra, hoje  organizados e conduzindo uma luta que tem sido definida como um dos mais  importantes fenômenos sociais e políticos do século XXI. A importância  da terra está fundamentalmente ligada ao fato de que as cidades estão  inchadas, inviabilizadas, e não dão conta de oferecer condições de vida  dignas à população que já as habita, tendo grande parte dela migrado do  interior.
A  produção agrícola baseada em unidades pequenas, familiares ou  comunitárias é a única solução para o campo e ela precisa, hoje, de  subsídios e políticas de Estado para se viabilizar. As comunidades  quilombolas fazem parte integral dessa solução e precisam de subsídios  específicos e de políticas específicas para o seu desenvolvimento como  unidades comunitárias rurais.